Thursday, December 14, 2006

O Chile e Augusto Pinochet

DESAPARECE MAIS UM DITADOR


Faz hoje 17 anos que se registaram as primeiras eleições após a ditadura de 17 anos, no país onde foi anteontem cremado o corpo do ex-ditador Augusto Pinochet, falecido este Domingo após um enfarte múltiplo e um edema pulmonar, aos 91 anos. Lágrimas de desolação por um lado, urros de felicidade, com direito a champagne, por outro. Os saudosistas da ditadura de Pinochet e aqueles que a esta sempre se opuseram reagiram assim, de forma contraditória, ao anúncio da morte do militar que governou o Chile entre 1973 e 1990, que desta forma encerra o ciclo histórico em que o país esteve dividido por décadas. Curiosamente, Pinochet falece no Dia dos Direitos Humanos, 10 de Dezembro, quando acabámos de entrar num novo século, no qual a luta por tais direitos terá de ser perseguida com mais ênfase que nunca.
A presidente Michelle Bachelet decidiu não decretar luto oficial pela morte do general, no que foi apoiada pelo ex-presidente Ricardo Lagos, numa tentativa de encerrar definitivamente esse capítulo da História chilena, em nome de uma proposta mais convergente para o Chile.
A reacção contraditória da população é prova indiscutível, todavia, da influência que, apesar de doente, o ex-ditador continuava a exercer sobre a sociedade chilena. Na verdade, o cargo de senador vitalício, com que escolhera ficar após o abandono do poder, ao permitir-lhe exercer um controlo indirecto sobre as Forças Armadas, fazia a figura de Pinochet erguer-se acima da democracia que, pela via das urnas, se vem consolidando no Chile desde 1989.
É evidente que, quando, em 1998, Pinochet foi detido em Londres, por ordem de um juiz espanhol, essa influência começou a desvanecer-se. Dezassete meses depois, de regresso ao Chile, a justiça local montou-lhe um apertado cerco e, não obstante a vitória dos advogados de Pinochet, ao conseguirem, em muito amparados na debilidade clínica do velho ditador, que este não fosse julgado, Pinochet permaneceu longos meses em prisão domiciliária.
Responsável pela morte, por razões políticas, de 3 mil pessoas (mil das quais nunca seriam encontrados os cadáveres), 200 mil exilados e milhares de torturados nas prisões, tragédias de um regime que, no dia 25 de Novembro, ao completar 91 anos de idade, viria a assumir, dizendo tudo ter feito em nome do Chile, Pinochet liderou o golpe de Estado que, em Setembro de 1973, depôs o socialista Salvador Allende e levou-o ao poder.
O Chile vivia, então, um período de aguda crise económica e social, em virtude do rotundo fracasso das acções desenvolvidas durante o mandato de Allende.
Concorrendo à Presidência da República em 1952, 1958 e 1964, Allende só seria eleito nas presidenciais de 1970, nas quais concorrera como candidato da coligação socialista Unidade Popular (UP). Ainda que sem maioria absoluta, alcançou o primeiro lugar, com 36,2% dos votos válidos e viu seu nome confirmado pelo Congresso. Assumiu, assim, a Presidência do Chile, com o projecto de socializar a economia chilena, através da reforma agrária e da nacionalização das indústrias, de algumas grandes empresas, dos bancos e das minas de cobre, na chamada “via chilena para o socialismo”, que pretendia uma transição pacífica para uma sociedade mais justa. Na verdade, durante toda a década de 1960, Allende havia sido um “revolucionário atípico”, que acreditava no processo eleitoral da democracia representativa e na possibilidade de instaurar o socialismo dentro do sistema político vigente. Daí as especificidades que a “via chilena para o socialismo” viria a apresentar.
A linha socialista assim adoptada, todavia, provocou a forte oposição dos democratas-cristãos de direita e das Forças Armadas, além da falta de unidade da esquerda radical e fortes pressões norte-americanas. O resultado mais tangível das políticas de raiz socializante adoptadas durante a breve permanência de Allende no poder seria, todavia, a grave crise económica em que o país mergulharia pouco tempo depois das eleições presidenciais de 1970, o que geraria uma enorme agitação social, que haveria de culminar no desgaste político de Allende e sua deposição pela revolução armada de 11 de Setembro de 1973, liderada pelo então recentemente nomeado comandante-em-chefe do Exército chileno, Augusto Pinochet, com o apoio ostensivo dos Estados Unidos.
Após a revolução vitoriosa, seria estabelecida uma Junta Militar (o denominado Conselho do Chile) para governar o país, sendo Pinochet apontado como representante do Exército. Em Junho do ano seguinte, assumiria, contudo, o cargo de Chefe Supremo da Nação e, em 1981, seria proclamado presidente da República do Chile por um período de 8 anos. Acabaria, porém, por permanecer no poder durante 17 anos, através dos plebiscitos organizados em 1978 e 1988, precisamente para manter-se no cargo.
Durante esses 17 anos, Pinochet reprimiu ferozmente a antiga UP, num regime de repressão com direito à utilização de campos de detenção e tortura, onde seriam praticadas as mais atrozes violações dos direitos humanos pela Direcção de Inteligência Nacional (DINA) e por outros organismos das Forças Armadas, o que provocaria o repúdio das Nações Unidas e de diversos Estados, incluindo os Estados Unidos, que haviam patrocinado o golpe. Não obstante a pressão internacional, as violações dos direitos humanos continuariam, enquanto o DINA era substituído pelo Conselho Nacional de Inteligência (CNI) e o Chile se integrava na Operação Condor (um plano de inteligência destinado a promover a prática do terrorismo de Estado em todo o Cone Sul) e se envolvia em querelas diplomáticas com os países vizinhos, designadamente com a Argentina de Rafael Jorge Videla a propósito do Canal de Beagle.
A nível económico, o regime militar chileno apoiou-se na aplicação do Institucionalismo Neoliberal, que abriu o país ao capital estrangeiro e deu início a um importante processo de liberalização económica, que haveria de concretizar uma política de choque que almejava corrigir a crise em que o Chile havia caído com Allende. Os apoiantes de Pinochet falavam, mesmo, do “milagre chileno”, para referir-se ao período de euforia económica em que se vivia.
A crise económica de 1981 não perdoaria, todavia, e as elevadas taxas de desemprego e o défice da Balança Comercial levariam a economia chilena a entrar em declínio a partir de 1982, o que abria o caminho para uma enorme onda de protestos populares contra o regime, que haveria de culminar na campanha do “não” no plebiscito de 1988.
De facto, e uma vez reconduzido no cargo pelo referendo de 1978, Pinochet enfrentava forte oposição ao regime ditatorial, o que o obrigou a flexibilizar a repressão, em nome da permanência no poder, já que a situação tornava-se insustentável. O próprio Papa João Paulo II, em visita ao Chile no início de 1987, tendo presenciado diversos protestos de rua contra a repressão, instigara Pinochet a introduzir alterações no regime que permitissem o regresso à democracia, tendo, inclusive, solicitado a renúncia do general.
Neste contexto, o governo promulgaria, durante esse ano, a Lei Orgânica Constitucional dos Partidos Políticos, que permitia a criação destes, e ainda a Lei Orgânica Constitucional sobre Sistema de Inscrições Eleitorais e Serviço Eleitoral, que permitia a abertura de registos eleitorais. Com estas disposições legais, estava aberto o caminho para que se cumprisse o promulgado na Constituição de 1980: os cidadãos deveriam ser convocados a um plebiscito onde ratificariam, para presidente da República durante mais 8 anos, o candidato proposto pelos comandantes em chefe das Forças Armadas e o general director dos Carabineros, nada mais do que Augusto Pinochet. Os partidários do “sim” eram, naturalmente, os membros do governo, o Partido da Renovação Nacional, a União Democrata Independente e outras legendas menores, enquanto os apoiantes do “não” agrupavam 16 organizações políticas da oposição, dentre as quais a Democracia Cristã, o Partido pela Democracia e algumas facções do Partido Socialista, já que o Partido Comunista permanecia proscrito.
Com a propaganda política, após 15 anos de ditadura, autorizada, introduzia-se um elemento vital para a força do “não”, que obteria 55,99% dos votos válidos, contra 44,01% do “sim”. Inicialmente, Pinochet permaneceria imóvel, votando os resultados do plebiscito a rotundo silêncio. No entanto, depois, o general reconheceria a vitória do “não” e afirmaria que continuaria a cumprir a Constituição de 1980: o período presidencial de Pinochet prolongar-se-ia por mais 1 ano, bem como as funções da Junta de Governo, enquanto eram convocadas eleições presidenciais e parlamentares, após serem introduzidas, na Lei Fundamental, alterações que, em parte, reduziam o autoritarismo do regime.
A 14 de Dezembro de 1989, faz hoje, precisamente, 17 anos, os Chilenos seriam, assim, chamados a pronunciar-se nas urnas para a Presidência e o Parlamento. Patrício Aylwin, candidato da Concertação oposicionista, sairia vencedor, com 55,17% dos votos. Receberia, deste modo, o mandato das mãos de Pinochet em Março de 1990, dando início ao processo de transição para a democracia, enquanto Pinochet permaneceria como comandante das Forças Armadas até 1998, quando, em virtude de uma ordem de captura internacional emanada do juiz espanhol Baltasar Garzón, pelo assassinato e tortura de cidadãos espanhóis, passaria a exercer as funções de senador vitalício no Congresso chileno, às quais viria, depois, a renunciar, em virtude dos problemas de saúde e das acusações de violações dos direitos humanos de que seria alvo.
No início do mandato, Aylwin não conseguiu apagar todos os vestígios do regime militar, em virtude do sistema político binomial e da existência de senadores designados, que impediam a reforma constitucional, ao mesmo tempo que a administração local das comunas permanecia nas mãos de pessoas designadas pelo governo militar e o Exército, ainda que tivesse deixado de participar do governo, constituía um importante actor da cena política chilena, opondo-se a diversas medidas da administração concertacionista. É neste contexto que se decide constituir a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, destinada a investigar e esclarecer as violações dos direitos humanos cometidas durante a gerência ditatorial. Os resultados do estudo seriam anunciados por Aylwin, que pediria perdão às famílias das vítimas, apresentaria medidas de reparação moral e material, bem como o desejo do Estado em impedir que novas violações voltassem a ser cometidas.
A nível económico, Aylwin propôs aumentar o gasto de imposto e melhorar a distribuição da riqueza, num momento em que a economia chilena deslanchava, em razão do crescimento das exportações de cobre e de produtos agrícolas. Permanecendo na senda institucional neoliberal, a economia chilena caminhava a bom ritmo, recuperando da crise que a afectara anos antes, numa rota que seria mantida pelo democrata-cristão Eduardo Frei Ruiz-Tagle, eleito nas presidenciais de 1993 e empossado em Março do ano seguinte. Frei dava, assim, início à abertura económica do Chile, negociando uma futura adesão do país ao NAFTA, enquanto o Chile se tornava membro observador do MERCOSUL, negociava um tratado de livre comércio e associação com a União Europeia e se tornava membro da APEC.
O início da crise asiática, contudo, em meados dos anos 1990, afectaria profundamente a economia chilena que, assim, entraria em nova rota descendente, reforçada pelas diversas crises ambientais que afectavam o país.
Simultaneamente, a detenção, em Londres, de Pinochet, precipitava uma crise política grave, já que o general era apoiado pela direita, que ia ganhando terreno na política chilena. Não o suficiente, porém, para derrotar Ricardo Lagos, um dos principais líderes da esquerda concertacionista que, assim, venceria as presidenciais de 2000, com 51,3% dos votos, vindo a ser sucedido pela actual presidente, Michelle Bachelet, recentemente eleita.
Perfeitamente integrada na lógica neoliberal, a economia chilena segue sendo um caso de sucesso apontado por muitos, criticado por outros. Assente na exportação de commodities para um nicho de mercado que aposta, essencialmente, na qualidade, a economia chilena surge hoje estabilizada, como aliás, o próprio Chile, imagem de marca de um país estável, política e economicamente.
Porém, o que jamais se evidencia são os custos sociais dessa estabilidade, já que, na verdade, em nenhum outro Estado sul e centro-americano a herança da ditadura é tão forte. Afinal, a actual Constituição foi desenhada pelos ideólogos de Pinochet para perpetuar a ligação do modelo económico ao Institucionalismo Neoliberal e, politicamente, erigir uma “democracia controlada”, que evita o real exercício da soberania popular. Esta situação justifica o aparecimento de tensões sociais episódicas, que não alcançam uma verdadeira mudança, como as manifestações dos estudantes secundaristas de Maio e Junho, a crise dos serviços públicos e os graves conflitos ambientais e trabalhistas, mas que, todavia, deixam antever que algo não corre na perfeição na extensa língua terrestre do Cone Sul.

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