Saturday, March 15, 2008

A Crise Equatoriano-Colombiano-Venezuelana

VENEZUELA, COLÔMBIA E EQUADOR – DEPOIS DE UMA SEMANA, CHEGA AO FIM A CRISE DIPLOMÁTICA


Chegou ao fim a crise diplomática que, durante uma semana, opôs a Venezuela, a Colômbia e o Equador. Foi no Domingo, 9 de Março de 2008, depois de, no dia 7, os presidentes venezuelano, Hugo Chávez, colombiano, Álvaro Uribe, e equatoriano, Rafael Correa, terem selado uma trégua simbólica com um aperto de mãos na reunião do Grupo do Rio, realizado na República Dominicana. Em nota emitida pelo ministério dos Negócios Estrangeiros, a Venezuela decidiu restabelecer o normal funcionamento das relações diplomáticas com o governo da República da Colômbia, animada “pela vitória da paz e soberania obtida no Grupo do Rio (…) onde se demonstrou a importância da união latino-americana para a superação dos conflitos”[i]. O Ministério venezuelano dos Negócios Estrangeiros decidiu também reabrir imediatamente a sua embaixada em Bogotá e receber o corpo diplomático colombiano em Caracas “no mais breve prazo”, depois de, a 4 de Março, ter expulsado do país o embaixador colombiano em defesa da soberania, da pátria e da dignidade do povo venezuelano.
Assumindo o papel de conciliador, clamando pela paz na América Latina e amenizando a tensão que marcou uma crise sem precedentes na região andina, Hugo Chávez foi mesmo elogiado pelo secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, que afirmou ter sido a intervenção do presidente venezuelano decisiva para solucionar a crise. “A intervenção do presidente Chávez foi muito importante, porque o tom que ele aplicou foi muito distinto. Foi um tomo reflexivo, conciliador, o que era necessário e fundamental neste momento”, afirmaria Insulza ao jornal chileno El Mercúrio.
A tensão teve início no Sábado, 1 de Março, quando o Exército da Colômbia invadiu o território equatoriano, a 1,8 Km da fronteira com a Colômbia, para bombardear um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)[ii] ali estacionado, matando, entre pelo menos dezassete guerrilheiros, o porta-voz da guerrilha e seu número dois, braço direito de Manuel Marulanda, o líder das Farc, Raúl Reyes.
Perante a admiração da sociedade internacional, o Equador enviou 3 200 soldados para a fronteira entre os dois países e, em comunicado oficial divulgado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, rompeu relações diplomáticas com a Colômbia, logo na Segunda-Feira seguinte (3 de Março), exortando a OEA a condenar o país de Álvaro Uribe por violação da sua soberania territorial. A decisão foi tomada após Bogotá ter informado que, no acampamento atacado, encontrou documentos e fotografias comprovando a existência de acordos entre as Farc e os governos do Equador e da Venezuela, mencionando, designadamente, contactos entre Reyes e o ministro equatoriano Gustavo Larrea e a entrega, por Chávez, de US$ 300 milhões às Farc. Na verdade, a Colômbia tem vindo a insinuar a existência de acordos entre os governos equatoriano, venezuelano e brasileiro com a guerrilha colombiana, o que é negado por Correa, Chávez e Lula, mas contribuiu decisivamente para o avolumar de tensões na região, com o vice-presidente colombiano, Francisco Santos, a pedir, durante uma sessão do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), que os vizinhos da América do Sul cumprissem a Resolução 1373 do Conselho de Segurança, que proíbe os países de dar refúgio àqueles que financiam, planeiam ou cometem acções terroristas. Chávez e Correa ordenaram, neste contexto, o envio de tropas para a fronteira com a Colômbia, denunciando a invasão do território equatoriano pelas Forças Armadas colombianas, indo Fidel Castro mais longe, ao responsabilizar os governos colombiano e norte-americano pelo aumento da tensão na região. Também o vice-presidente do Parlamento do Mercosul, o deputado brasileiro Rosinha (do PT do Paraná), desaprovou a atitude de Uribe, afirmando que a mesma compromete a integração na América do Sul. Sem condenar explicitamente a atitude da Administração colombiana, a Argentina, pela voz do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Jorge Taiana, afirmou sentenciar qualquer forma de violação da soberania territorial, um princípio inviolável do Direito Internacional, enquanto a chilena Michelle Bachelet e o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, apelaram ao diálogo para evitar uma escalada do conflito, mais importante do que procurar uma explicação para a incursão colombiana, e o México defendeu a abertura de negociações, reunindo-se a OEA extraordinariamente logo no dia 4. Diferente foi a reacção norte-americana, que tem na Colômbia a tradicional aliada na América do Sul. O porta-voz do Departamento de Estado, Tom Casey, afirmaria, mesmo, que os Estados Unidos apoiam o direito da Colômbia defender-se das Farc, apelando todavia ao diálogo entre as duas únicas partes envolvidas na contenda, a Colômbia e o Equador, estando a Venezuela de fora da questão. O Brasil, por seu lado, ao mesmo tempo que condenou a atitude da Colômbia, sem deixar de demarcar-se das partes, ao afirmar desejar a paz, não nutrindo qualquer posição doutrinária (Celso Amorim, ministro brasileiros dos Negócios Estrangeiros) em relação a nenhum país da região, assumiu-se desde logo como conciliador da crise, com o presidente Lula a conversar por telefone com Álvaro Uribe e Rafael Correa em busca de uma convergência que minimizasse a tensão e com a proposta de criação de uma comissão de investigação liderada pela OEA.
Na realidade, se a operação militar colombiana foi um sucesso, resultando na morte de pelo menos dezassete guerrilheiros, entre os quais Raul Reyes, um importante troféu; em termos políticos foi um rotundo fracasso, por ter lançado Uribe num profundo isolamento na América Latina. Até os moderados Brasil, Chile, Argentina e Peru condenaram a actuação da Colômbia, apenas suportada por um único e solitário apoio, o dos Estados Unidos.
Vale lembrar que o ataque ocorreu num momento em que as Farc davam demonstrações concretas de diálogo e negociação para a libertação dos reféns da guerrilha, em especial Ingrid Betancourt, sendo Reyes o interlocutor das Farc com os governos venezuelano e francês, que vêm tentando mediar o conflito entre os revolucionários colombianos e o governo de Álvaro Uribe.
É verdade que os três pontos de passagem na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela mantiveram a sua actividade normal, o mesmo ocorrendo na ponte de Rumichacha, que une o departamento colombiano de Nariño à província equatoriana de Cardri. Mas a tensão não deixou de crescer por isso. A escalada foi preocupante e chegou a trazer a ameaça de um conflito armado num sub-continente tradicionalmente pacífico. Com Bush defendendo Uribe e Chávez ameaçando deslocar dez unidades do Exército venezuelano para a fronteira com a Colômbia, em solidariedade a Correa, o clima ficou tenso e perigoso, beirando a transformação de uma crise bilateral num assunto internacional com a tensão colombiano-equatoriana a vazar para um diferendo entre os Estados Unidos (padrinhos da Colômbia) e a Venezuela (madrinha do Equador).
Sanada a crise, a tensão parece manter-se, com o Equador, cauteloso, a não restabelecer imediatamente as relações diplomáticas com a Colômbia, antes optando pela elaboração de um cronograma para um novo diálogo. O próprio secretário-geral da OEA reconheceu que falta ainda ultrapassar totalmente os motivos da discórdia entre os dois países andinos, para o que teve início o trabalho de uma comissão que investigará a incursão militar colombiana. Integrada pelos embaixadores, no Equador, do Brasil, Argentina, Peru, Panamá e Bahamas, a comissão deslocou-se no dia 10 ao local do ataque para produzir um relatório que será discutido na reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da OEA na próxima Segunda-Feira, dia 17. É importante, com efeito, que uma análise detalhada dos factos esclareça o que efectivamente se passou, de modo que o incidente seja reparado em nome de uma correcta interpretação das normas que regem o direito interamericano e a convivência entre os Estados da região, até porque, durante a crise, a OEA acolheu o pedido de Rafael Correa de ratificar a inviolabilidade de territórios e da soberania dos Estados.
Na verdade, esta não foi a primeira vez que Correa se indispôs com Uribe por violação do território equatoriano. No início do seu mandato, em 2007, Correa viveu o primeiro mal-estar diplomático com Álvaro Uribe em função das fumigações que o governo colombiano realizou, com agrotóxicos, na fronteira com o Equador, visando alegadamente erradicar as plantações de coca na região. A intervenção colombiana resultou na contaminação de dezenas de camponeses equatorianos e na perda de milhares de hectares de plantação e produção agropecuária, o que muito enfureceu o presidente do Equador. A crise foi diplomaticamente sanada, mas não deixou de causar moça.
A questão essencial que a recente crise trouxe à ribalta diz respeito, todavia, mais do que às ameaças à paz, à liderança brasileira sobre a região. O maior e mais importante Estado da América do Sul, o Brasil é, também, tradicionalmente, o factor moderador de crises no sub-continente. Seu objectivo, nesta crise, foi evitar que a mesma, de bilateral, passasse a regional ou mesmo a internacional, com o envolvimento dos aliados das partes directamente envolvidas. O esforço brasileiro desenvolveu-se, de facto, no sentido de arrancar um mea culpa da Colômbia, garantindo que o Equador aceitasse o pedido de desculpas, para, simultaneamente, neutralizar o belicoso Chávez e desautorizar a intromissão dos Estados Unidos na região. Ou seja, defendendo o sub-continente de um verdadeiro conflito, o Brasil procurou, igualmente, defender, uma vez mais, a liderança que impõe sobre a região. O secretário-geral da Conferência Ibero-Americana e antigo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Enrique Iglesias, impulsionou a mediação brasileira, elogiando a iniciativa do ministro Celso Amorim de construir um roteiro para solucionar a crise, que foi um excelente teste à liderança brasileira sobre a América do Sul.
Na realidade, o Brasil, cuja última guerra regional em que esteve envolvido terminou em 1870 (a Guerra do Paraguai), é o único Estado da América do Sul que pode desempenhar funções de mediador em conflitos como este. Em primeiro lugar, vive em paz com os seus onze vizinhos, mostrando-se interessado na prevenção e na solução de confrontos entre os países da região. Em segundo lugar, tem capital político junto desses países para fazer a sua influência exercer-se nos mesmos no sentido de dirimir eventuais desavenças. Foi assim que, em Janeiro de 1995, poucos dias depois de ter estalado o conflito entre o Peru e o Equador, o recém-eleito governo de Fernando Henrique Cardoso procurou, e alcançou em poucos dias, uma solução diplomática para esse diferendo. O mesmo procuraria fazer na crise de Março de 2008. Sendo certo que o Brasil percebe a intenção de Chávez de encontrar um inimigo externo para fortalecer uma posição interna enfraquecida. Afinal de contas, o presidente venezuelano, depois da derrota no referendo constitucional que lhe daria a presidência vitalícia do país, das notícias económicas que apontam a má situação e do bloqueio dos bens da Petróleos da Venezuela SA (PDVSA), precisava de um aquecimento político. Por isso propôs-se como mediador entre as Farc e o governo de Uribe, provocando a libertação de reféns que estavam nas mãos dos guerrilheiros, assim surgindo como o salvador da América Latina. Por isso insuflou as Farc com capital e apoios, para que, revoltando-se contra Uribe, ele pudesse surgir novamente como pacificador e salvador da região.
Para muitos, Chávez estaria apenas escondendo – embora não muito bem – a intenção de tornar-se líder do grupo guerrilheiro para, como presidente da Venezuela e líder das Farc, liquidar o governo colombiano e arrepiar caminho para a Grande Pátria Bolivariana, o sonho de Bolívar que Chávez pretende consumar. Nada mais adequado, para tal, que retirar Reyes do seu caminho, provocar o reconhecimento internacional das Farc e assumir o seu comando.
Independentemente de aceitarmos, ou não, as teorias mais conspiratórias que vão surgindo, a realidade é que o desentendimento euqatoriano-colombiano, tornado depois equatoriano-colombiano-venezuelano, acabaria por resolver-se. Diplomaticamente sanado, uma semana após ter sido despoletado, Rafael Correa, de regresso a Quito após a Cimeira de Santo Domingo, chegaria a afirmar que “talvez este seja o início de uma nova forma de diplomacia, que não busca contentar a todos, que não obedece a razões de força deixando em segundo plano a justiça, os princípios e as convicções”, até porque “o presidente Uribe (…) reconheceu a sua responsabilidade, pediu desculpas sem atenuantes ao povo equatoriano e comprometeu-se a jamais repetir esse tipo de agressão, nem com o Equador, nem com nenhum outro povo”[iii]. Na esperança de que a Cimeira da União Sul-Americana de Nações (Unasul), prevista para este mês de Março na cidade colombiana de Cartagena das Índias, não seja inviabilizada por esta crise, como chegou a ser aventado.

[i] Cfr. Ministério dos Negócios Estrangeiros da Venezuela, em nota emitida a 9 de Março de 2008.
[ii] Criadas em 1964, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) constituem-se como uma organização político-militar marxista-leninista de inspiração bolivariana, que busca atingir o governo colombiano e respectiva acção. Contrárias à intervenção norte-americana na Colômbia, as Farc opõem-se à privatização e à expropriação de recursos naturais, procurando resgatar os direitos das classes menos favorecidas, lutar pelos trabalhadores e pelos excluídos da pátria, retirar do Estado os corruptos e expurgar os políticos dos vícios do poder e do desvio de dinheiros públicos. Comandadas por Manuel Marulanda Vélez, também conhecido por Tirofijo, as Farc são uma das mais capacitadas, equipadas e antigas forças insurgentes da América do Sul e ocupam, hoje, cerca de 40% do território colombiano, sendo, em muitos países, consideradas uma organização terrorista. Autoproclamando-se uma organização político-militar, as Farc simplesmente consideram que o alcance dos seus objectivos motivam e justificam os seus esforços para tomar o poder na Colômbia através de uma revolução armada. Segundo a Administração norte-americana, as Farc obtêm financiamento através de extorsões, sequestros e do tráfico de drogas. Apesar da radicalidade dos métodos habitualmente utilizados pelas Farc, o grupo guerrilheiro vem, nos últimos meses, apresentando uma significativa predisposição para o diálogo, o que tem permitido a negociação, por intermédio da mediação venezuelana e francesa, visando a libertação de reféns mantidos em cativeiro pelos guerrilheiros.
[iii] Cfr. Rafael Correa em declarações à Folhapress, a 8 de Março de 2008, reproduzidas pelo Jornal da Cidade de Bauru, de 9 de Março de 2008.

Monday, March 10, 2008

A Chegada da Corte de D. João VI ao Rio de Janeiro


7 DE MARÇO DE 2008 – BICENTENÁRIO DA CHEGADA DA CORTE DE D. JOÃO VI AO RIO DE JANEIRO


Fez Sexta-Feira, dia 7 de Março de 2008, 200 anos que a Corte de D. João VI chegou ao Rio de Janeiro. Zarpando de Lisboa a 29 de Novembro de 1807, a família real portuguesa e a respectiva corte navegaram por mais de três meses até atingir o Brasil, protagonizando, pela primeira vez na história mundial, a aproximação de um soberano a uma colónia.
A complexidade do xadrez geoestratégico europeu de então, oscilante entre o turbilhão napoleónico e a cobiça colonial britânica, criava dificuldades intransponíveis à Coroa portuguesa, incapaz de enfrentar qualquer uma das potências hegemónicas da época (França e Inglaterra) e incapaz de impor a sua neutralidade. Ameaçada face aos interesses político-estratégicos das duas potências, a Coroa portuguesa foi forçada a optar pela mudança do centro de gravidade político do Reino, procurando, com a viagem transatlântica, garantir a sua sobrevivência, assim como a do Império Lusitano.
Efectivamente, um conjunto de transformações traçou o perfil das últimas décadas do século XVIII e o início do século XIX, determinando a necessidade da transferência da Corte portuguesa para o Brasil. Transformações que alteraram decisivamente a forma e o conteúdo das concepções e práticas correntes na época, desde a Revolução Industrial; às alterações geoestratégicas provocadas pela nova relação de forças na política internacional em resultado da independência dos Estados Unidos da América, das primeiras transformações ocorridas na América do Sul e das profundas mudanças registadas na Europa Oriental e no Império Turco no Mediterrâneo; à forma de exercer o poder político, alterado em virtude das inúmeras revoluções ocorridas, designadamente a Francesa, em 1789, com implicações transversais em toda a Europa e América do Sul.
Estes processos tiveram um carácter cumulativo e convergente com os interesses das correntes iluministas e liberais emergentes à época. Montesquieu, Voltaire, Diderot e Rousseau foram alguns dos pensadores que defenderam que através da razão seriam alcançadas as leis naturais regentes da sociedade, de modo que a missão dos governantes seria garantir o bem-estar dos povos através do respeito pelas leis e pelos direitos naturais de que os homens eram portadores; num ideal que comportava uma concepção de governo assente num sistema de eleições, assembleias e de separação de poderes. Conceitos como a liberdade individual, a igualdade dos cidadãos perante a lei e o direito das nações à independência criaram as condições para o desenvolvimento do indivíduo e para a sua participação na vida política, compondo a matriz do pensamento liberal.
Evidentemente, estas transformações, aliadas à instabilidade que se fazia sentir na Europa, no final do século XVIII e início do seguinte, reflectiram-se nas possessões ultramarinas dos Estados europeus. Foi sobretudo a alteração geopolítica colonial resultante da independência dos Estados Unidos que provocou implicações significativas, que em muito ultrapassaram os limites do império colonial britânico, já que a Inglaterra, enquadrada pela sua «realpolitik», passava a cobiçar outros mercados, designadamente os da América Latina. Tornava-se claro, para a maior potência comercial da Europa, que se o monopólio de Portugal e de Espanha sobre as respectivas colónias terminasse, essas colónias poderiam abrir-se ao comércio europeu, o que seria sobremaneira vantajoso para a Inglaterra, dado o seu pioneirismo na industrialização. Assim, a Inglaterra não se limitou a observar os problemas independentistas na América Latina, neles intervindo em favor dos movimentos revolucionários, nunca em prol da defesa dos direitos das soberanias portuguesa e espanhola.
Simultaneamente, ao lado da potência marítima inglesa, a potência colonial francesa combatia para garantir a consecução dos seus objectivos, de acordo com os desígnios expansionistas de Napoleão. No choque entre as duas potências hegemónicas de então, ambas combatendo pela preservação das possessões ultramarinas e pelo acesso e rotas dos mercados tidos como cruciais para o respectivo desenvolvimento económico e social, o domínio do Atlântico tornava-se num objectivo geoestratégico essencial.
Consciente da importância do Atlântico, Napoleão publicou, a 21 de Novembro de 1806, o Decreto de Berlim, procurando debilitar economicamente a Inglaterra através do anúncio de um bloqueio continental.
Neste contexto internacional, Portugal via-se numa encruzilhada. A aliança com o bloqueio continental francês significaria a perda das possessões coloniais para a Inglaterra, o fim dos negócios e a perda da base económica da vida nacional, o Brasil. O contrário implicaria arrastar para a guerra franco-britânica o território nacional, com implicações duvidosas quanto à sobrevivência da soberania portuguesa. A dúbia política externa portuguesa, que havia conseguido garantir a sobrevivência e a independência da dinastia de Bragança frente à França, à Inglaterra e à Espanha, encontrava-se, agora, num momento determinante, em que uma decisão clara e efectiva se impunha. Quando, em Agosto de 1807, o príncipe-regente é informado da concentração de um corpo do Exército francês com 30 000 homens, estacionado em Baiona pronto a entrar em Portugal, a decisão de aderir ao bloqueio continental é tomada. Mas apenas aparentemente, para apaziguar Napoleão. Enquanto isso, D. João VI celebrava, a 22 de Outubro, uma convenção secreta com o rei de Inglaterra, Jorge III, de acordo com a qual a Marinha de Guerra britânica auxiliaria na transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em troca da negociação de um tratado entre os governos português e britânico, assim que a família real portuguesa chegasse ao Brasil.
D. João VI, contra todas as advertências, hesitava em dar a ordem de partida, pois entendia ser seu dever manter-se junto a seu povo até ao fim. Somente quando, a 23 de Novembro, chegou a Lisboa um exemplar de “Le Moniteur”, no qual Napoleão Bonaparte anunciava as suas intenções de acabar com a dinastia dos Bragança e apoderar-se do trono português, D. João VI deu a ordem de partida, concretizada a 29 de Novembro – um dia antes da invasão de Lisboa pelas tropas de Junot. Entre 8 000 e 15 000 pessoas, juntamente com 80 milhões de Cruzados da Fazenda Real – metade do dinheiro em circulação no Reino – foram transportados pela esquadra inglesa – composta por sete naus, cinco fragatas, dois brigues, duas charruas e vários navios mercantes.
A transferência da monarquia portuguesa para o Brasil, apesar de inserida num contexto sócio-político-militar muito específico, não era uma linha de acção original, tampouco uma hipótese de último recurso. O plano da transferência já vinha sendo cogitado há muito. Parece ter sido aconselhado ao prior do Crato para salvar a independência em 1580. Depois da Restauração, o padre António Vieira formulara igual proposta, num momento em que Lisboa parecia estar muito próxima do inimigo. No início do século XIX, muitas eram as vozes que aventavam a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, onde o acesso às riquezas brasileiras permitiria ao monarca português conservar o próprio Reino de Portugal, cujas riquezas eram insuficientes para sustentar o Brasil. Reduzido a si mesmo, Portugal não tardaria a tornar-se uma «província de Espanha». Uma vez transferida a Corte, as possibilidades de aumento territorial do Brasil eram muitas e reais, segundo então se dizia, desde o Reino do Peru ao istmo do Panamá, desde o Chile (trocado com os Espanhóis pelos Algarves) até ao Estreito de Magalhães.
Neste sentido, a transferência da Corte de D. João VI para o Rio de Janeiro, longe de constituir uma fuga às responsabilidades nacionais, afirmava-se como a concretização de uma visão estratégica que vinha sendo amadurecida há mais de um século, assente na ideia de, na América do Sul, se construir um grande império, longe das vulnerabilidades e das ameaças que, na Europa, afectavam Portugal, catalisadas pelas convulsões provocadas pelas invasões napoleónicas. Motivações económicas foram também determinantes para a concretização desta visão estratégica. Contrastando com a debilidade económica da metrópole lusa, a economia brasileira prosperava significativamente, o que reforçava o ideal da construção de um grande império na América do Sul.
Transferida a Corte para o Rio de Janeiro, a capital do Império Português passava de Lisboa ao Rio de Janeiro, numa brilhante actuação político-estratégica do príncipe-regente D. João, que abriria possibilidades e oportunidades novas ao desenvolvimento da então colónia brasileira.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, D. João VI logo declarou a intenção de aí construir um império. Ao longo dos 13 anos que se seguiram, diversas decisões políticas, económicas e estratégicas foram postas em marcha influenciando profundamente o decorrer dos acontecimentos no Brasil e, claro, também em Portugal. A edificação de um império no Brasil revelar-se-ia, todavia, quimérica e desequilibrada, em função dos pressupostos que haveriam de nortear a sua construção e das transformações políticas, económicas e sociais então em curso. Mesmo assim, em pouco tempo, a cidade do Rio de Janeiro haveria de tornar-se mais opulenta que a de Lisboa, como já D. João V havia profetizado quando propusera a transferência da Corte lusa para o «imenso continente do Brasil», nele tomando o título de «imperador do Ocidente».
D. João VI logo procurou inaugurar na colónia a era industrial, numa obra que parecia desejar convertê-la numa nação independente. Sob o signo do liberalismo, era objectivo do príncipe-regente promover o desenvolvimento demográfico do Brasil, assim como o económico, com base na estrutura sócio-económica de então, baseada no trabalho-escravo ainda existente. Para um Estado-império como Portugal, não importava onde estivesse a sede do trono e, impressionado com a grandeza da colónia, D. João VI empreendeu a liquidação do regime colonial e deu início à construção do Estado brasileiro. Assim, ainda antes de aportar no Rio de Janeiro, D. João, em Salvador, assinou a carta-régia de 28 de Janeiro de 1808, abrindo os portos do Brasil às nações amigas e acabando com o monopólio do comércio pela metrópole. A 1 de Abril, anulou as amarras do sistema colonial mediante alvará e derrogou as cartas-régias de 1766 e de 1785, autorizando no Brasil o ofício de ourives, até então proibido para evitar o contrabando do ouro e o seu desvio do comércio monetário, e autorizando a manufacturação de fios, panos e bordados, pois que até à data apenas era autorizado o fabrico de fazendas grossas de algodão. Logo dotaria o Brasil de um sistema judicial próprio, instituindo um Supremo Tribunal, um Tribunal de Recursos e um Conselho Militar. Do mesmo modo, criaria o Ministério da Fazenda (da Economia), o Banco do Brasil, uma Câmara de Comércio, Indústria e Navegação e, ainda, o Jardim Botânico, ainda hoje de uma rara beleza situado aos pés do Corcovado. Para a construção naval, D. João VI criaria a fábrica de pólvora e o arsenal da Marinha e instituiria o ensino superior militar, com a inauguração do Colégio Militar e do Colégio Naval. Instituiria ainda o ensino superior médico, com a Faculdade de Medicina da Bahia e revogaria as restrições à publicação, com a circulação da «Gazeta do Rio de Janeiro», semelhante à metropolitana «Gazeta de Lisboa». Ainda mais, D. João VI autorizaria que fossem concedidos no Brasil os títulos de Marquês, Conde e Barão, pois que, até então, os nobres de nascimento apenas recebiam o foro de fidalgo, hereditário. D. João criaria ainda a siderurgia nacional, diversas fábricas siderúrgicas e o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, e adoptaria outras medidas para impulsionar a industrialização do Brasil, como a isenção de direitos aduaneiros às matérias-primas necessárias às fábricas brasileiras; a isenção de imposto de exportação para os produtos manufacturados no país; a utilização dos produtos brasileiros para a confecção das fardas das tropas reais; a concessão de privilégios aos inventores ou introdutores de novas máquinas no Brasil; e a atribuição de subsídios reais às indústrias manufactureiras que necessitassem de apoio. Com vista a edificar o grande império que pretendia, D. João VI anexou, também, de forma deliberada, a Guiana Francesa e a Cisplatina (actual Uruguai).
Apesar destas iniciativas, o Tratado luso-britânico de 1810 sufocou o estímulo ao desenvolvimento económico do Brasil. Este tratado derrogava, na prática, a abertura dos portos e dificultava os esforços de industrialização, já que concedia às manufacturas britânicas uma tarifa preferencial, em matéria de direitos aduaneiros, de 15%; um privilégio maior que o de Portugal, cujas manufacturas pagavam 16% de direitos para entrar no Brasil, enquanto as das restantes nações pagavam direitos da ordem dos 24%. Este tratado foi imposto a D. João VI pela Inglaterra, inconformada por não ter obtido para si um porto exclusivo no Brasil. A Inglaterra pretendia o monopólio portuário de Santa Catarina, a Sul do Brasil, porém D. João, durante as negociações em Lisboa, não concordou e, como compensação, promoveu a abertura dos portos brasileiros. Não era isto, todavia, que a Inglaterra queria, o que a terá levado a impor a D. João VI o Tratado de 1810.
Entretanto, a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte em Waterloo, em Junho de 1815, revigorou a ideia de consolidar o Império Lusitano a partir do desenvolvimento económico do Brasil como nação soberana, unida ao Reino de Portugal e dos Algarves. Assim, em Dezembro de 1815, o príncipe-regente D. João elevou o Brasil a nação, passando a ser um país soberano reconhecido como personalidade jurídica de Direito Internacional pelas principais potências da época, integrando o então Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, naquilo que se afigurava como a maior de todas as revoluções do sistema político reinante. Um projecto estratégico de grande magnitude que visava fortalecer a posição de Portugal face às potências do momento e, sobretudo, aumentar o seu poder negocial perante a poderosa Inglaterra.
Os súbditos portugueses, porém, não se conformavam com a abertura dos portos brasileiros, que lhes retirava as receitas provenientes dos direitos aduaneiros, dizendo mesmo que «Portugal se tornara uma colónia da colónia», para onde, além do mais, emigravam já inúmeros portugueses, em virtude da difícil situação económica da metrópole, contrastante com a promissora economia brasileira e, naturalmente, da instabilidade que grassava por todo o continente europeu.
Estas vagas migratórias contribuíram para adensar o já tenso clima da metrópole, concorrendo para a deflagração da revolução constitucional de 24 de Agosto de 1820. As Cortes portuguesas, então dominadas pelas forças liberais, instaram D. João VI a retornar a Portugal e tomaram diversas medidas no sentido de restaurar, no Brasil, o sistema colonial que D. João VI havia começado a desmontar. O objectivo era o restabelecimento do status quo anterior a 1808, isto é, anterior à abertura dos portos brasileiros, de modo que a Portugal fosse restituída a supremacia política sobre o Brasil.
Em virtude da pressão das forças políticas da metrópole sobre D. João VI para que regressasse a Portugal, o príncipe-regente, após alguma relutância, acedeu em fazê-lo em Abril de 1821. De regresso a Lisboa, D. João VI tomou as primeiras medidas para a convocação da Assembleia Nacional para elaborar a Constituição, enquanto deixara o Brasil nas mãos do seu filho, o príncipe D. Pedro que, como regente no Rio de Janeiro, estava munido de todos os poderes necessários para governar o Brasil de modo autónomo, quer administrativa, quer politicamente. D. João havia mesmo advertido D. Pedro que, em caso de o Brasil se separar de Portugal, deveria permanecer em suas mãos, ao dizer-lhe: «Se o Brasil se separar, antes seja para ti que me hás de respeitar, que para alguns desses aventureiros». De facto, tudo caminhava no sentido do fracturamento do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Não que os brasileiros desejassem separar-se de Portugal. O nacionalismo brasileiro, à época, não buscava a independência do Brasil, mas a manutenção da sua autonomia, da equiparação a Portugal como país soberano, unido a Portugal no Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Já os portugueses pretendiam o regresso do Brasil ao sistema colonial, dependente da metrópole e sem qualquer espécie de autonomia. Era aqui que residia a incompatibilidade das posturas, que levou D. Pedro, em situação de emergência, a seguir o conselho que o seu pai lhe deixara antes de partir para Lisboa. O regente do trono brasileiro cedo percebeu que o Brasil se separaria de Portugal, com ou sem a dinastia de Bragança e que, se não se colocasse à frente da nação brasileira, perderia o trono e o Brasil surgiria independente de Portugal sob a forma de um regime republicano. Posto isto, D. Pedro decidiu assumir o controlo do processo político então em marcha. Colocou-se à frente dos acontecimentos tendentes à separação do Brasil relativamente a Portugal. Seu objectivo não era subverter, mas preservar o status quo da unidade.
Foi assim que D. Pedro se tornou imperador do Brasil, lutando contra as forças republicanas e federalistas que ameaçavam a integridade territorial do país, de modo a evitar a desagregação das províncias, como havia sucedido nas colónias da América Espanhola.
Efectivamente, em matéria de constituição, o Brasil contou com inúmeras vantagens relativamente às colónias da América Espanhola. A independência do Brasil ocorria em 1822, uma década após a independência do Vice-Reino do Rio da Prata. Porém, não foi, como aqui, realizada contra os órgãos e os representantes metropolitanos; foi realizada pelo próprio príncipe herdeiro do Trono português. Assim, o Brasil não sofreu, como as ex-colónias espanholas, qualquer espécie de vácuo de poder, já que herdou, praticamente intactas, as instituições administrativas, políticas e militares criadas pelos outrora colonizadores portugueses. Deste modo, a unificação e a centralização do novo Estado, sob a forma imperial, ocorreram no momento mesmo da independência. Por outro lado, as regiões brasileiras não eram economicamente autárquicas entre si e comunicavam-se com facilidade através da navegação marítima e fluvial, com excepção do Mato Grosso, um território de maior vulnerabilidade. Nestes factores reside a explicação para a manutenção do antigo espaço colonial português unido em um só país, permitindo-lhe a possibilidade de deter um poder incomparavelmente maior do que o das ex-colónias espanholas, assumindo-se o Brasil como potência regional.
Com a independência do Brasil, Portugal perdia grande parte da sua importância política, já que, além da riqueza do território brasileiro, o mesmo era o ponto mais essencial para o seu comércio. O Brasil, por seu lado, não obstante ganhar a soberania política, deixava de ter o vector militar europeu de que necessitava para conservar Montevideu e a Banda Oriental.
Fosse como fosse, logo o Império do Brasil caminharia no sentido de tornar-se a potência regional que hoje é, como tal reconhecida pela vizinhança, pelo contexto regional e pela sociedade internacional global.