Friday, May 8, 2009

O ACUMULADO HISTÓRICO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA

O ACUMULADO HISTÓRICO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA



Na evolução da política externa do Brasil, certos princípios e valores vêm sendo agregados à diplomacia. Esses princípios e valores tornaram-se inerentes à conduta da política externa brasileira e são de tal modo marcantes que, além de conferirem previsibilidade à acção externa do Brasil, moldam essa conduta, impondo-se à sucessão dos governos e, até mesmo, às alterações de regime. Contribuem, ainda, para fazer da política externa brasileira uma verdadeira política de Estado, conferindo-lhe racionalidade e continuidade – mais do que mudança.
Neste sentido, pode-se identificar o acumulado histórico da política externa brasileira referindo, em primeiro lugar, que o desenvolvimento económico, ou a busca deste, é a base da política externa brasileira – e foi-o especialmente de 1930 a 1989. Na verdade, o desenvolvimento económico é a preocupação central da tradicional visão latino-americana das Relações Internacionais. A preocupação central em torno da qual giram as abordagens internacionalistas latino-americanas é o subdesenvolvimento a que as suas sociedades se vêem sujeitas. É como se, na sociedade internacional, existissem dois esquemas de Relações Internacionais. Como assinala o Professor Doutor Amado Luiz Cervo, da Escola de Brasília, “…as políticas exteriores dos países do Sul – pelo menos é o caso do Brasil – centralizam suas preocupações em torno dos problemas do desenvolvimento. O mesmo não ocorre com os países avançados do Norte. É possível perceber dois esquemas de relações internacionais contemporâneas. Entre países avançados, as relações igualitárias deixam transparecer um caráter lúdico. Zelar pela paz ou preparar-se para a guerra, compor ou desfazer alianças, construir a potência e o prestígio, difundir ideologias e valores situam-se do lado do divertimento. Entre países desiguais, para aqueles que são atrasados, as relações internacionais deixam transparecer o caráter existencial. Delas dependem, em boa medida, os ritmos de desenvolvimento, as oportunidades de melhoria das condições sociais, o cotidiano. (…) Os nortistas continuam admitindo que as teorias do desenvolvimento, desde Keynes, integram a ciência econômica, não a ciência política. Como se a pobreza, a dominação e a dependência, a cooperação e a exploração não fizessem parte do mundo real das relações internacionais”[1].
Também a defesa da autodeterminação dos povos, da não-intervenção e da solução pacífica de conflitos surge como parte do acumulado histórico da política externa brasileira, assim como o jurisdicismo, no sentido em que os tratados internacionais são assimilados como factores de estabilização das relações internacionais. O multilateralismo normativo é um outro aspecto importante do acumulado histórico da actuação externa do Brasil, sendo que, neste sentido, o Brasil participou da tentativa de erigir uma Nova Ordem Económica Internacional ao lado do Terceiro Mundo nos anos 1970 e, hoje, procura que a globalização crie uma ordem internacional mais justa, transparente e igualitária.
O realismo, o pragmatismo e a acção externa não confrontacionista são igualmente características marcantes da política externa do Brasil, bem como a criação de parcerias estratégias, surgindo relevantes, em momento de crise internacional, as parcerias Brasil-Alemanha e Brasil-Japão – em função da depressão das relações Brasil-EUA – sem esquecer o relacionamento que o Brasil tem desenvolvido com os outros países emergentes, designadamente com a Rússia, a China e, até, a própria Índia. Vale lembrar que, relativamente aos vizinhos da América do Sul, o Brasil tem procurado sempre um trato de cordialidade oficial, que o aconselha a não ostentar a grandeza nacional e a superioridade económica de que desfruta em relação aos vizinhos.
Tendo agregado, mais recentemente, a preocupação com o narcotráfico, a luta contra o macroterrorismo e a protecção ambiental à sua política externa, o Brasil desenvolve, tradicionalmente, uma inserção internacional independente, o que pressupõe uma visão própria de mundo, a autonomia do processo decisório, a formulação própria da política externa e sua posterior execução – ainda que períodos de excepção a esta independência tenham igualmente existido.
Tendo por base este acumulado histórico – sendo de ressaltar a tese dos Três Ds de Araújo de Castro, Desenvolvimento, Descolonização e Desarmamento – a política externa brasileira vem evoluindo, desde a independência e, sobretudo, desde a implantação da República (1889) seguindo em geral estes vectores, mas oscilando, em períodos de excepção, no que se refere à independência na inserção internacional. Dito de outro modo, a característica essencial, o grande traço de continuidade da política externa brasileira é a independência com que esta é formulada e executada – uma independência, sobretudo, relativamente aos Estados Unidos. Todavia, nesse processo/linha de continuidade, tem havido períodos de excepção, hiatos, nos quais a política externa brasileira se alinhou às directrizes norte-americanas e deixou de lado a autonomia que a caracteriza de um modo geral.
Apenas durante a Primeira República (1912-1930) esse não seria o grande traço de continuidade da acção externa do Brasil. A linha condutora da política externa brasileira de então era o alinhamento face aos EUA e o que fugia a este comportamento era considerado marginal e excepcional.
De facto, na primeira metade do século XX, quando a sociedade brasileira estava ainda na sua infância evolutiva, marcada pelos parâmetros da agroexportação de Clodoaldo Bueno, a política externa do país teve como tendência predominante a inserção do Brasil no contexto hemisférico, tendo como eixo central o estreitamento das relações com os EUA, de acordo com a aliança não escrita concebida pelo Barão do Rio Branco, cuja gestão corresponde ao único hiato autonomista desse período.
Efectivamente, com Rio Branco, a política externa brasileira foi temporariamente transformada num instrumento de apoio ao desenvolvimento económico, utilizada como instrumento estratégico para alcançar a industrialização do Brasil, buscando-se uma relativa autonomia na dependência e uma barganha para a defesa dos interesses brasileiros. Após a gestão Rio Branco, o restante da República Velha retomaria o alinhamento face a Washington.
Quando Getúlio Vargas subiu ao poder, em 1930 (onde permaneceria até 1945), como reacção a esse conservadorismo de estruturas obsoletas, a política externa brasileira retomaria a lógica de Rio Branco e o Brasil transitaria, do modelo liberal-conservador, para o desenvolvimentista, cuja orientação sócio-político-económica assentaria numa busca incessante pelo desenvolvimento económico através do método da substituição de importações. Regendo-se internamente por este nacional desenvolvimentismo populista de esquerda, o Brasil de Vargas actuaria, externamente, de acordo com esse padrão de comportamento, numa postura que atingiria o apogeu na barganha nacionalista às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Neste período, o Brasil vendeu a preço elevado a sua adesão a um conflito que não lhe interessava. O Brasil jogava com o Eixo e com os Aliados, negociando e apoiando aquele que, no momento, mais vantagens económicas lhe oferecesse, sem pejo em voltar-se de um para outro consoante essas vantagens. O Brasil e a América do Sul ganhavam rapidamente um poder de negociação como nunca haviam tido, sem que os EUA se apercebessem dessa relevância no contexto declarado de beligerância.
Apenas com as vitórias de Rommel no Norte d`África é que os Estados Unidos se aperceberam da importância da região, começando Roosevelt a temer uma invasão alemã às Américas, a partir do Nordeste brasileiro. Roosevelt oferece a Vargas, neste contexto, no célebre encontro de 1942, o financiamento integral da Siderurgia de Volta Redonda, nos arredores do Rio de Janeiro, como forma de comprar a adesão brasileira aos Aliados. Conseguiu e, Volta Redonda, a maior siderurgia da América Latina, seria construída em tempo recorde, começando a funcionar logo em 1946.
Vargas criara, assim, para o Brasil, uma política externa autónoma; uma política externa que, nacionalista e preocupada com o desenvolvimento económico, chamar-se-ia nacional desenvolvimentismo.
Todavia, o propósito de Getúlio teve uma duração limitada. Ele actuava ainda num momento dominado pelas velhas estruturas regionais de poder e, quando as contradições internas da sociedade brasileira se avolumaram, ele caiu e, junto, o seu nacional desenvolvimentismo. Em 1946, a reacção conservadora a Vargas colocou no poder Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), por forma a terminar com o varguismo incómodo ao status quo da ordem interna brasileira e da ordem externa hemisférica. Dutra esperava que o Brasil viesse a ter uma relação privilegiada com os Estados Unidos por o terem apoiado na guerra. O novo presidente chegou mesmo a pensar que o Brasil poderia ser convidado a integrar a Organização do Atlântico Norte que era criada em 1949. Todavia, em função da localização a Sul do Brasil, ademais já integrado nas estruturas hemisféricas do pan-americanismo, no seio da Organização dos Estados Americanos (OEA) e militarmente protegido da subversão comunista pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), o convite não se concretizou. O Brasil já se havia, por outro lado, colocado dos EUA na Ordem bipolar dos Pactos Militares, pelo que qualquer acção norte-americana visando esse objectivo era desnecessária. A decepção de Dutra não invalidou o alinhamento brasileiro aos EUA, voltando o Brasil, tal como na Primeira República, às formas mais ou menos passivas de submissão aos Estados Unidos.
O desenvolvimento económico do Brasil – que já havia estado presente na equidistância pragmática de 1935 a 1942 e no alinhamento do Brasil aos EUA em 1942, quando o país lucrou em reequipamento económico e militar – não deixou de dominar a política brasileira. Muito pelo contrário: o alinhamento incondicional de Dutra aos EUA visava, precisamente, uma relação especial com a superpotência ocidental, que deveria implicar um tratamento especial face às reivindicações brasileiras de auxílio económico para o desenvolvimento económico interno.
O método do alinhamento a Washington para o alcance desse fim não foi, todavia, o mais acertado perante as dinâmicas do Brasil de então e, nesse contexto, germinariam as sementes desenvolvimentistas de Vargas. Ou seja, o nacional desenvolvimentismo de Vargas, conquanto não tenha vingado na sua época, viria a ter muito mais importância no futuro do que se poderia supor, pois funcionaria como as raízes profundas das características de autonomia que a política externa brasileira voltaria a ter, assim que Dutra saísse do poder.
De facto, em 1951, houve uma reacção ao conservadorismo de Dutra, que levou Vargas novamente ao poder (1951-1954), com uma nova aplicação, interna e externa, do nacional desenvolvimentismo populista de esquerda de outros tempos. O desenvolvimento económico do país continuava a ser a prioridade, mas desta vez Vargas teria de adaptar-se à era bipolar.
O contexto interno e externo que Vargas encontrou era, de facto, bastante distinto do que o que existira entre 1930 e 1945.
Internamente, o incremento da industrialização e da consequente urbanização levaram à afirmação da burguesia e de uma classe operária nascente que, porém, impunha novas exigências ao poder político. O sistema político era obrigado a dar resposta à crescente participação popular, o que levou Vargas a retomar o desenvolvimentismo todavia abrindo a economia brasileira ao exterior, em busca de capitais, tecnologia e cooperação económica.
Externamente, e uma vez que Getúlio precisava desses capitais e, por conseguinte, da cooperação norte-americana, no contexto de Guerra Fria, em que os EUA, mais preocupados com a Europa, desligavam-se da América Latina, que sabiam de antemão estar do seu lado, a margem de manobra do Brasil foi drasticamente reduzida. Situação que se acentuou quando, em 1953, o republicano Eisenhower se tornou presidente dos Estados Unidos. Estando a Europa e o Japão ainda em processo de reconstrução e o Terceiro Mundo ainda muito embrionário, restava ao Brasil apenas a cooperação de origem norte-americana, à qual não tinham como fugir.
Esta contradição externa somava aos distúrbios pelos quais passava a sociedade brasileira, a braços com uma crescente polarização entre direita e esquerda, ao mesmo tempo que o desenvolvimentismo de Vargas era cada vez menos apoiado e gerava sucessivamente mais críticas. Esta situação conduziu Vargas ao suicídio – para não ter de renunciar – o que provocou uma imensa comoção nacional.
Em seu lugar, a reacção conservadora fez ascender ao poder uma figura manejável pelos EUA, Café Filho (1954-1955), visando pôr ordem ao caos populista esquerdizante do Brasil. Novamente, interna e externamente o Brasil voltou a alinhar-se com a potência norte-americana, promovendo uma total abertura económica ao capitalismo, assim como a afirmação das teses da Escola Superior de Guerra (ESG). A política externa brasileira vivia o primeiro hiato da linha de autonomia e independência na inserção internacional do país que tem vingado até hoje.
Figura apagada da História do Brasil, que permaneceria na Presidência nem um ano completo, Café Filho – dos períodos do país menos estudados – depressa motivaria uma forte reacção ao conservadorismo que tentou imprimir às dinâmicas do Brasil, com a eleição de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961). O desenvolvimentismo ganhava novamente força, especialmente consubstanciado no Plano de Metas dos 50 anos em 5. Necessitando de capitais externos para levar adiante esse plano, em função da escassez de reservas do Brasil, Jk teria de associar esse desenvolvimentismo à entrada desses capitais estrangeiros no país, o que, se criou um desfasamento entre a política e a economia, depressa deu origem a uma síntese entre o desenvolvimentismo e a necessidade de capitais estrangeiros – leia-se norte-americanos – na formulação do que seria o desenvolvimentismo associado (associado aos capitais externos).
Assim, o governo de JK foi marcado por uma iniciativa política que procurava viabilizar a atracção de capitais públicos estrangeiros (leia-se norte-americanos) para o Brasil, de acordo com o desejado Plano de Metas a nível interno. Esse instrumento político foi a célebre Operação Pan-Americana (OPA), tendo-se a política externa de Kubitschek caracterizado pela defesa do pan-americanismo. Movida politicamente sobretudo por questões económicas, a política externa de JK não constituía exemplo isolado da adopção dessa postura pelo Brasil, voltando o desenvolvimentismo económico a ser o vector central das políticas interna e externa do Brasil, como sucedera com Rio Branco e, sobretudo, com Vargas e, até mesmo, com Café Filho e Dutra.
Os primeiros passos da política externa de JK foram no sentido de reafirmar a solidariedade política frente aos Estados Unidos e à causa ocidental, em busca de vantagens económicas. A cedência da ilha de Fernando de Noronha para a instalação de um posto norte-americano de observação de foguetes teleguiados, em fins de 1956, constitui prova cabal desse alinhamento[2].
Foi assim que, ajustando necessidades económicas internas e externas, o governo JK estabeleceu a agenda diplomática do Brasil em torno, por um lado, da negociação de acordos regionais e/ou internacionais que estabilizassem as cotações internacionais do café e, por outro, das reivindicações de ampliação e flexibilização dos empréstimos fornecidos sobretudo pelo Banco Mundial[3], sendo que, a partir de 1958, a agenda diplomática brasileira seria substancialmente ampliada, revelando-se fundamental na defesa do panamericanismo.
A conjuntura internacional evoluía rapidamente. A partir de 1955, com o processo de desestalinização e a subida ao poder de Kruschev na União Soviética e, depois, com o início da coexistência pacífica em 1956-1957, a política externa soviética sofreria alterações significativas que se repercutiriam também sobre a América Latina. Esta atitude criou, nos círculos políticos norte-americanos, o receio de uma possível penetração económica soviética na América Latina que fosse, de alguma forma, favorável à região e a fizesse pender para o lado soviético da Balança de Poderes.
Evoluía, por outro lado, a própria conjuntura política e económica da América Latina. De uma parte, o processo de redemocratização que, durante os anos 1955 e 1958, ocorrera em diversos países latino-americanos (Argentina, Peru, Venezuela e Colômbia) desgastou, junto da opinião pública e dos próprios governos latino-americanos, a imagem da Administração Eisenhower (e dos EUA em geral), que apoiara politicamente os governos ditatoriais de Rojas Pinilla na Colômbia, de Pérez Jimenez na Venezuela e de Manuel Odria no Peru. De outra parte, a conjuntura económica era amplamente desfavorável para a América Latina. A deterioração das relações entre os EUA e a América Latina criava assim diversos receios aos EUA, abrindo caminho ao surgimento de propostas que preconizavam uma ampla revisão dessas relações. Foi neste contexto que JK lançou a Operação Pan-Americana (OPA), procurando mobilizar os demais países latino-americanos para pressionarem o presidente Eisenhower a adoptar uma atitude de maior cooperação com o desenvolvimento da região, com base no argumento de que o estado de subdesenvolvimento poderia aproximar a América Latina dos países comunistas.
Ao mesmo tempo que motivava, da parte dos EUA, a Aliança Para o Progresso – uma amplo projecto norte-americano que visava melhor enquadrar a América Latina na política externa norte-americana, ainda que de resultados minguados – a OPA produzia, internamente, o fortalecimento do grupo nacionalista desenvolvimentista adepto do desenvolvimento económico e da inserção internacional independente dos EUA.
É no contexto da OPA e da radicalização esquerdista do Brasil que ascende ao poder Jânio Quadros (1961), que irá levar a política externa autónoma aos extremos, com a recuperação da barganha nacionalista dos anos 1950, desenvolvendo a sua Política Externa Independente, que o governo seguinte, de João Goulart (1961-1964) haveria de extremar ainda mais.
De facto, em matéria de relações internacionais, o governo Jânio Quadros procurou, desde o início, imprimir uma política externa independente face aos Estados Unidos; política esta que se materializou no reatamento de relações diplomáticas com a União Soviética, na intensificação dos laços comerciais com os países socialistas, na recusa à política de isolamento de Cuba do sistema interamericano e na adopção de uma política anti-colonialista e de afirmação do princípio da não intervenção.
Segundo Pedro Sampaio Malan[4], a análise da política externa brasileira de 1961 a 1964, quando se delineou a Política Externa Independente, abarca três elementos distintos mas integrados. Em primeiro lugar, há a retoma do ideário da Operação Pan-Americana com uma “noção mais clara das possibilidades e responsabilidades do Brasil, após o surto desenvolvimentista-associado da segunda metade dos anos 50”[5]. Em segundo lugar, a política externa independente enquadrou perfeitamente o nacionalismo que vinha funcionando como ideologia dominante do Estado, ante o esforço da industrialização brasileira, apesar deste processo ter sido feito com recurso amplo ao capital estrangeiro. A população apoiava a política externa independente face aos EUA, o que tanto Quadros como Goulart perceberam, daí retirando vantagens ao nível da política interna, especialmente em fase de grandes dificuldades económicas. Em terceiro lugar, tanto a revolução cubana quanto o agravamento da tensão Leste-Oeste e, ainda, o processo de descolonização permitiram aos governos Quadros e Goulart explorar a possibilidade do Brasil afirmar, externamente, a sua autonomia face à hegemonia norte-americana sobre a América Latina. Para tanto, seria necessário que o Brasil ultrapassasse o âmbito do subsistema interamericano e alcançasse uma afirmação mais ampla no contexto internacional, o que, nas condições da década de 1950, nem Vargas nem Kubitschek haviam conseguido fazer.
Neste sentido, a posição afirmativa e independente do Brasil, no período que vai de 1961 a Março de 1964, manifestou-se em quatro áreas específicas:
Cuba e as questões da autodeterminação e não-intervenção;
Relações com os países socialistas, especialmente com a URSS;
Anticolonialismo na África;
Apoio à inclusão, na agenda da Assembleia Geral das Nações Unidas, do ingresso da China na Organização.
Foi em torno destas questões que se estruturou a oposição interna à política externa independente, que desejava o retorno do Brasil à órbita do sistema regional interamericano e à submissão face aos EUA. Situação que gerou uma polarização extrema da sociedade brasileira em direita e esquerda e que levaria o presidente Quadros a renunciar visando obter do Congresso poderes reforçados. Foi na realidade um golpe palaciano, já que o objectivo não era deixar a Presidência, mas reforçar os seus poderes, na convicção de o Congresso jamais permitiria a subida ao poder do vice João Goulart, de esquerda, num momento em que as forças da direita ganhavam terreno em torno do alinhamento económico e externo aos EUA. Enganou-se, mas o receio da ascensão do esquerdista Goulart levou à experiência parlamentarista no Brasil (1961-1963): Goulart assumia como presidente, mas com poderes reduzidos, tendo de partilhá-los com um gabinete ministerial presidido pelo primeiro-ministro Tancredo Neves.
Goulart é empossado presidente da República e, em termos de política externa, leva o Brasil pelos caminhos da total autonomia face aos EUA, levando ao auge a Política Externa Independente de Quadros.
Mas a Política Externa Independente levada aos extremos teria consequências imprevisíveis sobre a evolução interna do Brasil.
As contradições e dificuldades económicas do Brasil adensavam-se com a postura dos Estados Unidos relativamente ao reforço da Política Externa Independente com João Goulart.
De cato, não obstante os alcances da Política Externa Independente com Quadros e, particularmente, com Goulart, ao transformar a política externa brasileira em multilateral, relacionando-se o país com a Europa Comunitária, o Japão, o Terceiro Mundo e os países socialistas, a verdade é que os Estados Unidos, ainda que com o seu poderio internacional abalado, continuavam a ser dominantes e a ter uma forte capacidade de reacção à barganha nacionalista e à Política Externa Independente, o que determinaria a interrupção desta.
Esta interrupção está associada à crise do regime populista no Brasil. Desde a segunda metade do seu mandato que Goulart não conseguia controlar a situação interna e via-se empurrado, pelos sectores populares, para a radicalização que viria adensar as contradições do regime. Com a economia quase paralisada, o agravamento dos conflitos sociais e políticos deixou o governo sem alternativas, ameaçando ainda as bases do capitalismo do populismo brasileiro[6]. Assim, no célebre Discurso dos Três Ds, o embaixador Araújo Castro procurou salvar a Política Externa Independente despolitizando-a e concentrando-a em temas económicos, por forma a ultrapassar a inviabilização do neutralismo de Quadros e a inacção de Goulart ante as pressões norte-americanas. A política externa brasileira sofreu um acentuado refluxo. Mesmo assim, a Política Externa Independente continuava a desagradar aos conservadores, razão pela qual viria a estar no centro da reacção conservadora que culminaria com o golpe de 31 de Março de 1964.
De facto, com Goulart no poder, os EUA começaram a considerar o Brasil um caso perdido e, assim, começaram a articular o golpe que colocaria os militares no poder.
Castelo Branco, Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici procuraram conter o movimento popular e as tendências esquerdistas, alinhando Castelo Branco e Médici com os EUA, embora Costa e Silva viesse resgatar a ideia do projecto nacional, opondo-se aos Estados Unidos.
À frente das decisões das Forças Armadas, Castelo Branco envolveu o regime de contra-revolução permanente em que mergulhara o Brasil na doutrina segundo a qual o conflito político e ideológico entre os Estados Unidos e a União Soviética deslocara-se para o interior de cada país, assumindo o carácter subversivo da luta revolucionária. Neste contexto, considerava que a preservação da independência nacional exigia um certo grau de interdependência, que o levou a orientar a política externa brasileira pelas directrizes norte-americanas, com base no conceito, que ele próprio elaborara, das fronteiras ideológicas, que justificava o novo comportamento internacional do Brasil: abandono do terceiro-mundismo, do multilateralismo e da Política Externa Independente, compondo uma aliança automática com os EUA – no que constitui um novo hiato na tradição autonomista da política externa brasileira.
A sucessão de Castelo Branco pelo marechal Arthur da Costa e Silva teve por efeito resgatar o interesse nacional como fundamento essencial de uma política externa verdadeiramente soberana, já que o alívio da tensão Leste-Oeste parecia guiar a sociedade internacional cada vez mais em direcção ao policentrismo.
Assim, as relações internacionais do Brasil, durante o mandato de Costa e Silva, representaram uma profunda ruptura com o período anterior, opondo-se frontalmente aos desígnios norte-americanos. A política externa que o chanceler de Costa e Silva, Magalhães Pinto, prosseguia, virava-se para o desenvolvimento e a autonomia, à semelhança da Política Externa Independente, com a diferença de não mencionar a reforma social. Era a chamada diplomacia da prosperidade[7], que afirmava que a distensão Leste-Oeste fazia emergir o antagonismo Norte-Sul, pelo que o Brasil deveria definir-se, não como nação do Ocidente, mas como nação do Terceiro-Mundo. Por conseguinte, o Brasil deveria aliar-se aos restantes países do Terceiro-Mundo para com estes compor uma aliança que lutasse pela alteração das regras injustas do sistema internacional.
De acordo com as novas orientações da política externa, o Brasil procurou afastar-se do pan-americanismo em busca de um novo latino-americanismo. Neste sentido, propôs a cooperação e a integração regionais, assim como a cooperação nuclear, entre os países do Terceiro-Mundo; o relacionamento das nações ibero-americanas por meio da Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana (e não da OEA); o aprofundamento das relações comerciais com os países socialistas; e a cooperação entre os países latino-americanos.
Com Médici a questão alterou-se. Em termos de política externa, o governo Médici era desenvolvimentista e pró-americano, desenvolvendo uma diplomacia que, na sequência do Brasil potência, buscava o interesse nacional. Esta diplomacia do interesse nacional buscava restabelecer, com os Estados Unidos, uma relação de confiança, especialmente nas áreas onde houvera, no período anterior, maiores divergências. Abandonando a solidariedade terceiro-mundista e o discurso politizado – substituído pelo pragmatismo – a nova estratégia internacional do Brasil abandonava o multilateralismo em benefício do bilateralismo, ambicionando colocar o Brasil no grupo dos países do Primeiro Mundo, e alinhava-se aos EUA mesmo não se submetendo a eles. Assim, o Brasil seguiu recusando-se a assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear e avançou com o desenvolvimento da própria indústria armamentista e estabeleceu laços com o Japão e a Europa Comunitária com vista à atracção de investimentos e tecnologia.
Neste contexto, é pertinente a interrogação sobre a conciliação das boas relações com os EUA e o desenvolvimento de um projecto nacionalista-industrializante de grande potência[8] – que para os governos anteriores havia sido impossível. De facto, num momento em que a Doutrina Nixon preconizava um afastamento dos EUA relativamente às querelas mundiais, através da transferência de tarefas para as potências regionais aliadas, e em que no Chile e no Peru estavam no poder governos de esquerda e em que na Argentina e no Uruguai as contradições adensavam-se, beirando a guerra civil, o Brasil surgia, para os EUA, como um aliado de peso para estabilizar a região, pelo que os EUA toleravam a não submissão do Brasil à sua orientação. Sendo que a situação da América do Sul permitiu o crescimento do Brasil face aos vizinhos.
Face a esta hegemonia regional brasileira e a necessidade que Washington tinha do Brasil para evitar a subversão comunista na América do Sul, num momento em que a preocupação primeira de Nixon era acabar com a questão do Vietname, existia, de facto, um espaço internacional para que o Brasil desenvolvesse o seu projecto de potência mundial sem a oposição norte-americana. A diplomacia do interesse nacional preocupava-se em aproveitar as brechas existentes no sistema internacional, daí que tenha apostado no bilateralismo em detrimento do multilateralismo, voltando-se para os países mais fracos.
Quando Geisel assume a Presidência, em 1974, procura retomar uma maior margem de manobra para o Brasil, através do Pragmatismo Responsável e Ecuménico, que determinava o estabelecimento de relações de forma variada e com quem fosse mais vantajoso.
Em função do relacionamento que o Brasil assim desenvolvia com os países do Terceiro-Mundo e dada a insatisfação geral relativamente aos laços com os EUA, a diplomacia de Geisel incrementou a cooperação comercial, a política de atracção de investimentos, a transferência de tecnologia e a implantação de projectos agrícolas e industriais com a Europa Comunitária e com o Japão. Relativamente à América Latina, o Brasil foi gradativamente abandonando o discurso de grande potência para estreitar relações com os vizinhos, particularmente com a Argentina, com a qual iniciou conversações para solucionar o problema do aproveitamento hidroeléctrico da Bacia do Prata.
A margem de manobra autonomista que Geisel imprimiu à política externa independente, através do Pragmatismo responsável, seria depois amplamente visível com Figueiredo 81979-1985), José Sarney (1985-1990), segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) e com Lula (2003-2007-…). Assim, os governos de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e o primeiro mandato de Fernando Henrique (1995-1999) seriam novamente hiatos à tradição autonomista da política externa brasileira vigente desde 1930, alinhando-se incondicionalmente aos EUA.
De facto, o último governo militar (assim como o primeiro civil) foi marcado pela continuidade da política externa brasileira no quadro interno e externo cada vez mais adverso. Quadro no qual os EUA adquiriam, com Reagen, um novo protagonismo internacional, com a sua Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE) a produzir uma nova Guerra Fria e a acirrar a bipolaridade, enfraquecendo a URSS e promovendo a subjugação política do Terceiro Mundo. Também as Nações Unidas enfraqueciam como instrumento de apoio aos países periféricos, enquanto Reagen terminava com o diálogo N-S e punha fim à proposta mexicana de criar uma Nova Ordem Económica Internacional, desarticulando, por conseguinte, a actuação coordenada do Terceiro Mundo. Simultaneamente, o neoliberalismo irrompia nos principais países do centro, eliminando qualquer esperança de sobrevivência das “experiências capitalistas nacional-desenvolvimentistas do Sul”[9]. O modelo desenvolvimentista esgotava-se.
Em ternos de relações internacionais o Brasil logrou obter grandes avanços, especialmente em matéria de respeito por parte da sociedade internacional. A política externa autodenominou-se universalismo porque se esforçou por manter a autonomia do Brasil num cenário internacional cada vez mais adverso, através de uma diplomacia que se espraiava em relações com os quatro cantos do mundo, na mesma lógica do Pragmatismo Responsável. Assumindo o Brasil como um país do Terceiro Mundo, a diplomacia de Saraiva manteve a actuação em convergência com os Não-Alinhados – embora não fosse membro pleno deste grupo – denunciando as estruturas políticas e internacionais da sociedade internacional capitalista.
Neste sentido, o Brasil continuou actuando nos fora internacionais segundo a lógica do Movimento dos Países Não-Alinhados, tendo apoiado a Argentina na Guerra das Malvinas/Falklands e mantido a presença em África, nos países do Médio Oriente e até mesmo na China.
Finalizando a abertura política iniciada por Geisel, Figueiredo concluiu com êxito a transição do regime militar para a democracia. Ainda que as eleições não tenham sido livres, houve uma verdadeira campanha eleitoral, com possibilidade de manifestação por parte da população, que depositou todas as esperanças no presidente eleito, Tancredo Neves, ainda que este fosse uma personalidade oriunda do regime – apenas era parte da oposição moderada ao regime.
Tendo sido eleito, não chegaria a tomar posse, pois adoeceria entretanto, vindo a falecer em Abril, já depois de empossado o vice José Sarney, que assumiu como programa de governo, a plataforma eleitoral de Tancredo – a Nova República.
A política externa da Nova República apresentou uma evolução muito particular. Rompeu com o pragmatismo responsável e com o universalismo, argumentando que o Brasil era um país ocidental, pelo que deveria maximizar as suas potencialidades individuais para chegar ao Primeiro Mundo. Deveria, assim, entrar em estreita cooperação com os Estados Unidos. Assim, afastou-se do Terceiro Mundo, desligando-se das reivindicações deste.
Tendo em conta a situação internacional, na qual os EUA reafirmavam a sua liderança, o socialismo entrava em período de reforma, com a ascensão de Mikhail Gorbatchov na União Soviética – o que sucedeu praticamente ao mesmo tempo em que José Sarney assumiu a Presidência do Brasil – e o Terceiro Mundo enfrentava graves dificuldades – em virtude da Reunião do G 7 em Cancun ter posto um ponto final no diálogo Norte-Sul, o Brasil decidiu aproximar-se dos Estados Unidos como forma de alcançar o desígnio de vir a pertencer ao Primeiro Mundo.
O Brasil iniciava, desta forma, a maximização das suas possibilidades de actuação internacional, em primeiro lugar através da valorização da América do Sul, com vista a estreitar os laços de cooperação e integração com a Argentina, que vinham sendo costurados há algum tempo. O entendimento entre os presidentes Sarney e Raul Alfonsín foi decisivo para a concretização deste objectivo, tendo ambos aproveitado a conjuntura adversa do ponto de vista económico e diplomático. A crise da dívida, fazendo os países latino-americanos ficarem vulneráveis às pressões do FMI e do Banco Mundial, a Guerra das Malvinas/Falklands e o conflito centro-americano – que permitia a Reagen trazer a Guerra Fria para a América Latina – motivou a aproximação entre o Brasil e a Argentina, em virtude de ter fomentado a solidariedade bilateral para fazer frente às novas pressões. O retorno da democracia em ambos os países voltava, por seu lado, a aproximar os regimes brasileiro e argentino
Floresciam as condições propícias à retoma das negociações para a integração económica entre os governos argentino e brasileiro, num momento em que os problemas em torno das hidroeléctricas que se construíam na região eram sanados (pelo Tratado de 1979), em que a corrida nuclear entre os Dois chegava ao fim (com o Tratado de 1980) e em que o processo de abertura económica era iniciado em ambos os países[10].
Neste ambiente, os dirigentes brasileiros e argentinos tomaram a firme decisão política de enfrentar, em conjunto, as dificuldades da conjuntura económica da década de oitenta, assinando, em 1988, o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, pelo qual os dois países se comprometiam a criar um espaço económico comum através da supressão gradual, por um período de dez anos, das barreiras pautais e não pautais à circulação livre de bens e serviços[11].
As relações entre o Brasil e os EUA sairiam bastante prejudicadas desta aproximação argentino-brasileira, tendo-se por isso o Brasil voltado para outras regiões, tentando preservar a diversificação dos eixos diplomáticos e demonstrar autonomia em relação aos EUA.
O período de governação de Fernando Collor foi particularmente rico em matéria de acontecimentos internacionais. Assim, em 1990, Margaret Thatcher renunciou na Inglaterra, concluindo, no país, mais de uma década de hegemonia conservadora. No final do ano, o Iraque invadiu o Kuwait, tendo em 1991, após a rejeição do presidente iraquiano do ultimatum da ONU para retirar as suas tropas do Kuwait, tido início, a 16 de Fevereiro, a Guerra do Golfo, que terminaria escassos onze dias depois. Ainda em Fevereiro, o Pacto de Varsóvia era extinto, em Maio a Croácia tornava-se independente, a cidade de Berlim era estabelecida como capital da Alemanha reunificada e o início da guerra civil da Jugoslávia fechava o semestre. Esse ano marcou, ainda, a dissolução da URSS, enquanto as Comunidades Europeias reconheciam a independência da Croácia e da Eslovénia, terminava a guerra civil em El Salvador e o Peru passava por um golpe de Estado liderado por Alberto Fujimori. Em Maio tinha início, no Rio de Janeiro, a ECO-92, reunião ecológica que reuniu 178 países, enquanto em Julho começavam os Jogos Olímpicos de Barcelona e, em Agosto, uma multidão, com Nelson Mandela à frente, protestava em Pretória contra a segregação racial.
Neste contexto internacional, o Brasil afastou-se da sua anterior política externa multilateral e universal, voltando a alinhar-se aos EUA e a desenvolver uma política quase exclusivamente voltada para as Américas e submissa às proposições do FMI segundo o Consenso de Washington.
Conjunto de princípios – convergentes com o receituário do FMI, do Banco Mundial e do BIRD – propostos pelos Estados Unidos, o Consenso de Washington deveria ser aplicado por todos quanto desejassem receber ajuda económica e financeira dos EUA e das instituições financeiras internacionais.
Aderindo a esse conjunto de princípios, a diplomacia de Collor substituiu o consenso em torno do desenvolvimento pelo Consenso de Washington[12]. O objectivo formal da nova orientação externa era “obter para o Brasil o acesso a novas tecnologias. Nesse sentido, a abertura comercial se daria de forma unilateral e sem um mínimo de reciprocidade de parceiros (e concorrentes) externos”[13].
No começo, o Brasil ainda tentou agir com alguma autonomia, especialmente por causa dos compromissos assumidos com a base política que levara Collor à Presidência. A ideia era desenvolver, internamente, uma política económica que detivesse a inflação, para que, no plano externo, o país conseguisse recuperar alguma da imagem perdida junto dos credores internacionais. Mas como os Planos Collor e Collor II não surtiram os efeitos esperados e a comunidade financeira internacional não passou a olhar o Brasil conforme o presidente idealizara, então ele optou por acomodar-se às regras impostas pelos Norte-Americanos, esperando, então sim, alcançar o objectivo de integrar o Brasil na sociedade internacional junto do Primeiro Mundo. Collor desmontou o projecto nuclear brasileiro, assim como a indústria da informática, abandonou antigas parcerias, anulando as iniciativas tendentes ao Brasil potência, apostando antes nos grandes temas do meio ambiente, da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos humanos, do desenvolvimento sustentável, da justiça e da paz, conjugados com a Agenda para a Paz que implicava o desarmamento e a obediência aos novos regimes internacionais. A política externa brasileira perdia grande parte do acumulado histórico que ela mesma vinha construindo de modo coerente havia décadas. O próprio relacionamento com a Argentina viria a ser transformado, especialmente pela actuação da equipa económica de Zélia Cardoso de Mello. A integração que Sarney e Alfonsín vinham costurando a dois passava a incluir também o Uruguai e o Paraguai, países que aplicavam direitos aduaneiros muito reduzidos, com o objectivo de reduzir os praticados no Brasil e na Argentina. Do carácter autonomista e desenvolvimentista que a integração no Cone Sul apresentava na década de 1980, evoluía-se para um viés comercial-neoliberal.
Nem toda a diplomacia brasileira alinhou nesta lógica, o que levou Collor a retirar-lhe muitas das suas atribuições. O Itamaraty não teve, na realidade, uma participação activa na política externa de Collor. O governo actuava de modo independente. Mas quando este se começou a afundar em escândalos sucessivos, então Collor procurou resgatar a sua respeitabilidade também dentro do Itamaraty, chamando Celso Lafer para ministro em Abril de 1992. A política externa brasileira centrada naqueles grandes temas, mundialmente consensuais, seria então definida na 47ª Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro de 1992, com Lafer a alinhar na política externa previamente traçada pelo governo, ao mesmo tempo que o Brasil passou a reivindicar a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Com os escândalos a conduzir ao processo de impeachment de Collor, assumiu Itamar Franco, então vice-presidente.
A política externa brasileira visava a integração do Brasil no sistema internacional, de forma democrática e condizente com os valores da sociedade brasileira e com o processo de reestruturação interna por que esta vinha passando desde a tomada de posse de Itamar.
Neste sentido, o Brasil seguiu defendendo a democracia, a justiça social, os direitos humanos, as liberdades individuais, a justiça social, o desenvolvimento, a autodeterminação dos povos, o princípio da não-intervenção em assuntos internos e a solução pacífica e negociada de conflitos[14]. Mas fazia-o tendo por base a ênfase na ideia de projecto nacional, que a política externa brasileira recuperava. O objectivo era revalorizar a presença do Brasil na sociedade internacional, tanto através dos fora multilaterais, quanto da integração regional – o que havia sido amplamente reduzido com Collor.
Assim, em termos multilaterais, e uma vez que o espaço de manobra existente nos anos 1970 e 1980 era agora reduzido, a estratégia do Brasil passou a ser participar nas organizações internacionais e, no seio destas, construir alianças visando alterar em seu favor o rumo da política internacional.
Desde logo, fez-se eleger, por dois anos, como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas[15], assinou a Convenção sobre Armas Químicas e a Convenção para a Proibição de Armas Biológicas. Em termos multilaterais, o Brasil propôs uma Agenda de Desenvolvimento ligada a uma Agenda da Paz, revitalizando diversos relacionamentos que Collor havia deixado esfriar e participando activamente nos grandes fora internacionais, designadamente as Nações Unidas e a Organização Mundial de Comércio (OMC). No plano regional, a integração sul-americana e, particularmente, do Cone Sul, foi a área privilegiada, tendo o Brasil chegado a propor a criação da Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), em 1993. O Mercosul ganhou, também, a dimensão estratégica que, até então, não possuía
Estas iniciativas que surgiam como clara resposta à implantação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), que deveria iniciar funções a de Janeiro de 1994, e começava a funcionar como verdadeiro canto da sereia para os países da América do Sul, especialmente a Argentina e o Chile. Na verdade, Clinton prometia, aos países que aceitassem o receituário do Consenso de Washington, a integração no NAFTA e, por meio desta, o acesso ao mercado norte-americano, como base para uma futura integração hemisférica. Ademais, decorreria em Miami, em Dezembro de 1994, a Cimeira Ibero-Americana, reunindo as trinat e quatro repúblicas americanas com excepção de Cuba, para lançar-se, oficialmente, a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que previa a eliminação das barreiras ao comércio e aos investimentos a partir de 1 de Janeiro de 2005.
O Brasil reagiu a este planos. Manter a Argentina no Mercosul e comprometer o Chile com negociações para se tornar membro associado eram dois aspectos fundamentais.
Assim, a diplomacia brasileira assinou, com o Chile, acordos de cooperação científica, técnica e tecnológica, criando ainda o Conselho Bilateral de Economia e Comércio e uma comissão mista para estudar a ligação interocêanica. Em outro sentido, a diplomacia brasileira procurou, junto da Colômbia, da Venezuela, da Guiana e do Suriname, estabelecer negociações bilaterais nas áreas agrícola, meio ambiental transportadora e de repressão ao narcotráfico e controlo da região amazónica. Com o Equador e o Peru, para além da questão amazónica, procurou também desenvolver negociações para o estabelecimento de uma via interoceânica. Com a Bolívia, procurou aproximar-se a chamá-la para membro associado do Mercosul, de modo a facilitar, não só o fornecimento de gás ao Brasil, como ainda a adesão de outros Estados da Comunidade Andina ao Mercsoul. Na América central, o Brasil defendeu o reexame da situação de Cuba na OEA, rejeitando também a militarização da América Latina. O Brasil tentou ainda uma solução pacífica para o conflito inerno no Haiti, evitando uma intervenção externa como pretendiam os EUA. Afinal, “abrir mão do princípio da não-intervenção seria permitir futuramente a legitimidade de ações como o Plano Colômbia”[16].
Relativamente à América do Norte, a política externa de Itamar preocupou-se com o NAFTA, mas também com o relacionamento bilateral com os EUA, conseguindo, no âmbito do Uruguai Round que não se aplicassem sanções norte-americanas ao comércio brasileiro[17]. Foram ainda estabelecidos diversos acordos militares entre o Brasil e os Estados Unidos.
Em termos mais específicos, o Brasil procurou estreitar os laços com os países de Língua oficial Portuguesa, no seio da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), enquanto a União Europeia se afirmava como o maior parceiro económico do Brasil (realizando 26% das trocas comerciais[18]), o que incomodava os EUA.
Os acontecimentos que se sucederam às Revoluções Europeias, associados ao processo de globalização e expansão do capitalismo “despojaram muitos grupos nacionais de decisão de «critérios orientadores» para a formulação da política exterior”[19], levando Fernando Henrique Cardoso (FHC), então novo presidente, a adoptar o pensamento único que Collor introduzira no Brasil.
Neste sentido, a política externa de FHC, tal como a de Collor, em maior escala, vieram romper com a continuidade da política externa brasileira que se vinha manifestando no período da Política Externa Independente e do Pragmatismo Responsável, tendo FHC, habilmente, tenha esvaziado o Itamaraty das suas funções[20], em razão do MRE continuar a ser um reduto de resistência do projecto nacional desenvolvimentista contrário ao projecto neoliberal de abertura económica. A política externa de Fernando Henrique Cardoso contribuiu para a expansão do universalismo da política externa brasileira, através de uma diplomacia pessoal que se centrou em torno de quatro vectores essenciais, a saber o multilateralismo, o regionalismo, os Estados Unidos e a União Europeia[21].
Com Lula, o Brasil passaria a ter uma política externa ainda mais activa e assertiva, optando desde logo por uma linha de defesa activa dos interesses e da soberania nacionais, o que implicou começar imediatamente a trabalhar por uma ordem internacional mais justa e equitativa.
De facto, a política externa brasileira tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar aquilo que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, o Brasil procura, neste sentido, recuperar a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[22]. Além disso, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA.
A diplomacia de Lula tem procurado contribuir para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, estando disposto a pagar uma quota mais alta ao FMI para poder ampliar o seu poder de decisão no seio desta instituição internacional; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens).
A actual política externa brasileira procura igualmente dar ênfase aos temas sociais, em particular à luta contra a fome e a pobreza no âmbito global.
Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação.Desde logo, o Brasil volta-se para a participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo[23] com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA. O Brasil tem também estruturado pontos de contacto e ligações com a Índia, a China e a África do Sul, relacionando-se ainda com a Rússia.
Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC, na qual o Brasil tem reivindicado a queda das barreiras alfandegárias e dos subsídios agrícola.
Assim, ressalta, desde logo, o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL).
Recuperando grande parte do acumulado histórico da diplomacia brasileira, que Collor e o primeiro governo FHC haviam deprimido, o Brasil volta hoje a formular e a executar uma política externa que, autónoma e independente, se enquadra na tradição característica que teve desde 1930.







[1] Cfr. CERVO, Amado Luiz (org.); O Desafio Internacional – A Política Exterior do Brasil de 1930 a Nossos Dias, Colecção Relações Internacionais, Editora Universidade de Brasília, 1ª edição, Brasília DF, 1994, pp.15.
[2] Cfr. SILVA, Alexandra de Mello e; A Política Externa de JK: Operação Pan-Americana, documento não publicado, fornecido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), pp.15.
[3] Cfr. Idem, ibidem.
[4] Cfr. MALAN, Pedro Sampaio; Relações Económicas Internacionais do Brasil (1945-1964)”, in FAUSTO, Boris (org.); “História Geral da Civilização Brasileira”, tomo III: “O Brasil Republicano”, Vol. IV – Economia e Cultura (1930-1964), 3ª edição, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, pp.95-99.
[5] Cfr. Idem, pp. 95-96.
[6] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; Relações Internacionais do Brasil: de Vargas a Lula, Editora Fundação Perseu Abramo, 1ª edição, São Paulo, Janeiro de 2003, pp. 31.
[7] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 45.
[8] Cfr. idem, pp. 48.
[9] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 62.
[10] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007, pp. 334.
[11] Cfr. art.1º e art.3º do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina. DAI – Divisão de Actos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Brasília, Brasil.
[12] Cfr. Idem, pp. 81.
[13] Cfr. Idem, ibidem.
[14] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 85.
[15] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 88.
[16] Cfr. Idem, pp. 88.
[17] Cfr. Idem, ibidem.
[18] Cfr. Idem, pp. 89.
[19] Cfr. BERNAL-MEZA, Raul; A Política Exterior do Brasil 1990-2002, in Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, ano 45, nº 1, Brasília DF, 2002, pp. 36-71, pp. 36.
[20] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 93.
[21] Cfr. CERVO, Amado Luiz; A Política Exterior: De Cardoso a Lula, in revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, ano 46, nº 1, Brasília DF, 2003, pp. 5 (editorial).
[22] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[23] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.